O Poder e o Tempo
Os lugares em volta da grande mesa de reuniões, encontram-se todos ocupados, há muito que não se assistia a uma reunião tão concorrida.
No topo norte da mesa encontra-se o presidente da comissão de accionistas da empresa, foi ele mesmo quem mandou convocar aquela reunião, facto que muito contribuiu para tão vasta aderência. Ninguém sabe, ao certo, a razão de tão inesperada reunião, mas todos pressentem que só um motivo muito forte levaria o presidente a convocá-los.
Nos dois primeiros lugares de cada um dos lados, sentam-se os representantes dos quatro maiores grupos de accionistas, enquanto nos cinco imediatamente seguintes, três do lado esquerdo do presidente e dois do lado direito, estão sentados os directores de cada uma das sucursais da empresa.
Os restantes lugares de tão ilustre mesa, são ocupados por dez dos responsáveis dos onze departamentos e que integram a comissão administrativa da empresa desde que o anterior administrador executivo se retirou do cargo, o que não deixa de causar alguma surpresa. O porquê de um lugar vago?
O presidente da mesa dá indicações de que deseja tomar a palavra, o silêncio impõe-se na sala:
- Caríssimos representantes dos senhores accionistas da nossa empresa, senhores directores das nossas sucursais, senhores Drs. e Engs. Responsáveis pelos nossos mais diversos departamentos, como é do vosso conhecimento, sempre manifestei a minha vontade de que o substituto do muito ilustre Dr. Álvaro Mendes, pessoa que muito prezo, fosse encontrado o mais rapidamente possível, sendo também verdade que nunca vos escondi a minha preferência para que a escolha viesse a recair sobre alguém dos nossos quadros. Realmente, acho que seria muito injusto, com tão bons elementos como os nossos, procurar a solução além portas…
O silêncio volta a imperar na sala, só o barulho dos aparelhos de ar condicionado se faz ouvir.
…Pois bem, depois de muito analisar, e pensar, resolvi convidar, e propor a esta assembleia, o Dr. Lourenço do Carmo para administrador da nossa empresa.
A notícia é recebida por entre um misto de surpresa e manifestações de alegria:
- Como devem calcular, não tomei a iniciativa de dirigir tão importante convite sem, primeiro, ouvir a vossa opinião. No entanto, e porque gosto de transparência em tudo quanto faço, decidi, caso assim concordem, endereçar tal convite na vossa presença.
O presidente após obter o sim da maioria, telefona à sua secretária, pedindo-lhe que faça entrar o Dr. Lourenço do Carmo:
Alguns dos presentes ainda não conseguiram digerir a surpresa, e decepção, que tal revelação lhes provocou. Há muito que esses tais, sonhavam e desejavam, em segredo, tal cargo.
Lourenço do Carmo entra, é convidado a sentar-se e é surpreendido com tão honroso convite:
- Dr. Lourenço, embora a iniciativa de o convidar, tenha sido minha, quero dizer-lhe que a decisão final, foi tomada por unanimidade.
Lourenço do Carmo não ignora quanta hipocrisia existe em tal decisão unânime, pois, se há certeza que não lhe foge, é a do quanto aquele convite mexeu com os sonhos daqueles perante quem sempre se recusou a ajoelhar-se. Tem perfeita noção do quanto terá a perder, em termos de paz interior, se aceitar aquele convite, mas também sabe que não aceitar poderá ser visto como um acto de ingratidão:
- Exmo. Senhor Presidente, Exmos. Senhores representantes dos ilustres accionistas desta empresa, ilustres senhores directores das sucursais da mesma, caros colegas, sem o mínimo de hipocrisia, quero aqui manifestar o orgulho que sinto por ter sido alvo de tão distinto convite…
...não me é estranho que alguns dos meus colegas acreditavam, e desejavam, que o escolhido pelo nosso excelentíssimo Sr. Presidente viesse a ser outra pessoa que não eu, isto, não só, porque tenho a plena consciência de que nunca alimentei tal hipótese, tal como tenho igual consciência de que este convite reflecte toda a dedicação que, ao longo destes mais de vinte anos, tenho vindo a dar à nossa empresa.
Ao mesmo tempo que dirige tais palavras, Lourenço do Carmo vai tentando ler os olhares de todos os presentes:
- Se essa dedicação tem sido, ou não, a mais indicada, não me cabe a mim analisar, mas sei que tenho dado o melhor de mim. Quando vos digo que nunca alimentei tal hipótese é porque de facto nunca a alimentei mesmo, quer perante os demais, quer perante mim mesmo, isto é, se tal convite me tivesse sido feito há alguns anos atrás, talvez o aceitasse sem necessitar de pedir tempo algum para reflectir em todas as alterações que tal poderia provocar na minha vida, quer laboral, quer pessoal. Não quero, com isto, dizer que esteja a pensar em pedir esse tempo de que falei para reflexão, pois presidir ao conselho de administração da empresa a que tenho dedicado grande parte da minha vida é, sem dúvida alguma a aspiração de quase todos quantos aqui estão, não vale a pena tentarem nega-lo. Penso que, facilmente se compreende porque não digo, mesmo todos, isto é, tirando eu e todos aqueles que desempenham funções superiores, mais nenhum de vós enjeitaria tal oportunidade.
Contudo, antes de vos comunicar a minha decisão, a qual, penso eu, já todos perceberam qual é, gostaria de vos dar a conhecer algumas das razões que, muito, contribuíram para esta minha imediata decisão, embora não me tivesse preparado antes, pois nem mesmo quando fui chamado aqui, alguma vez me passou pela cabeça que tal convite me iria ser dirigido.
Quando entrei para esta empresa, era um jovem, como a maioria de vós sois hoje, a rondar os trinta anos, vinha cheio de projectos, de ambições, de ilusões e de tudo o que é próprio de alguém que está a iniciar uma carreira profissional. Os anos foram passando, fui-me entregando a outros sonhos, fui descobrindo outros interesses, abrindo outras portas, sem no entanto deixar de dar o meu melhor a esta empresa, fui, enfim, descobrindo novos valores, ao mesmo tempo que, é com pena que vos digo isto, fui percebendo que a partir de certo momento, as pessoas mais velhas desta empresa deixaram de ver o seu trabalho devidamente reconhecido.
Lourenço do Carmo apressa-se a pedir desculpa ao presidente da comissão de acionista, a quem agradece por não se ter deixado cair nesse desprezo generalizado pelos colaboradores mais antigos:
- Hoje, felizmente, atingi uma estabilidade financeira que me permite viver sem a preocupação do vil metal, por outro lado atingi uma estabilidade familiar que me permite colher no meu próprio lar a realização pessoal que durante muitos anos procurei atingir através da minha actividade laboral, por fim descobri que o verdadeiro poder, esse mesmo poder pelo qual muitos de vós não hesitariam em abdicar de muito do que já conquistaram até hoje. O poder, como eu dizia, não está nos cargos que cada um possa ocupar, mas sim na capacidade que cada um terá para saber administrar o seu tempo, isto é, o verdadeiro poder é o podermos gerir o nosso tempo.
Indo ao concreto da questão, o que vos quis dizer com toda esta minha introdução é que cheguei a uma fase da minha vida onde trocar o tempo que dedico aos meus hobbies, às minhas coisas, o tempo que dedico a minha esposa, à minha família, aos meus amigos, isto é, o meu tempo e com ele todo o poder de que disponho, por mais alguma compensação monetária, algum poder ilusório, alguma visibilidade social, etc. não se me apresenta como racional e, conhecendo-me como me conheço, com todas as minhas limitações, com todos os meus defeitos e também com todas as minhas qualidades, sei muito bem que seria isso que acabaria por acontecer. Assim sendo, peço-lhe imensa desculpa Sr. Presidente, mas neste momento prefiro recusar tão ilustre convite e ficar somente com poder de poder ser dono do meu próprio tempo, continuar a ser quem sempre fui e, em vez de aceitar tão honroso convite, afastar-me do local onde acreditei que poderia vir a ser feliz mas para onde me arrasto com sacrifício no lugar da Felicidade de outrora.
Moral: “Quem faz o que gosta nunca trabalha, quem trabalha sem estímulos nunca poderá ser Feliz”
Francis D’Homem Martinho
19/02/2020