Postado por Edvaldo Rofatto em 16 de Fevereiro de 2022 às 21:21
Passagem
Quem cola o bilhete do tempo Que nos leva de volta à infância? Só queria ser passageiro E poder visitar a minha criança Na velha casa de hábitos velhos. Tantos anos castigam sua velhice. (Castigam também este coração.) O presente devasta o passado Mais que o incerto futuro. Está em pedaços o bilhete, E estou só nesta estação. Mas eu queria voltar para lá. Entrar na casa. Ir para o quarto. Deitar sob o cortinado. Esperar ele vir clarear a noite. “Bença, pai!” – eu pediria. “Durma com os anjinhos.” Ele diria antes de apagar a luz. E a noite inteira ficaria azul Como os olhos dele.
Postado por Edvaldo Rofatto em 11 de Janeiro de 2021 às 22:08
REDOMA
Igual a quem vira páginas Do fim ao início de um romance Para reler emoções já vividas Volto ao meu velho jardim. Eu envelheci bem mais que ele Com seus canteiros demarcados Por úmido musgo e escura murta. Aqui naquelas tardes de música Dançavam todas as vozes Dos ares das águas das árvores. A vida não se ameaçava de mortes. Igual ao colo de minha mãe Aqui eu me aconcheguei Ouvindo bater o coração do mundo. Mas agora nesse silêncio Dos ares das águas das árvores Envoltas numa solidão sem alma Que vozes dirão as tardes Que anoitecem em mim?
Ave, palavra! Asa da crença Que alça voo A cada letra. Mas seu sentido De palma e pedra Cá dentro fica E faz da mente Igreja bíblica. Ave, Jerônimo Com seu leão, Sua caveira. Sua canção Na língua antiga Resume o mundo A ermo arvoredo De que até hoje Eu me circundo, Meu São Jerônimo.
(*nome dado à Bíblia traduzida, por São Jerônimo, do grego para o latim)
Como hoje é o teu aniversário A somar tanta idade acumulada, Se tua renitente infância Dá a luz de todas as manhãs A noites de tantas pessoas? Renasces cada dia mais menino Tanto mais os homens envelhecem Pela senilidade dos erros repetidos. Por isso, dura um ano inteiro A celebração do teu aniversário! Tua presença está marcada Em cada dia do calendário, Pois fazes do vento da tua palavra Jardineiro do verso que semeias Para acolhermos no coração A beleza das flores intuídas, Qualquer que seja a estação. E isso que nos dá de presente, Fica eterno em canteiros da tua alma Inteiramente de poesia florescida E de toda adúltera maldade ausente.
Sempre fui curiosa e certa vez trabalhei como apontadora de café numa fazenda: contava os sacos de café colhidos e fazia os pagamentos. Para mim era diversão pois não precisava trabalhar. Minha vida sempre foi muito abastada. Meu pai era do Exército e sempre supriu todas as necessidades. Então eu não entendia muito bem o quanto era laboroso e árduo o trabalho daquelas pessoas. Eu gostava do "povão" como dizia minha irmã. Gostava e gosto muito de estar perto de pessoas simples, que independente dos bens que possuam não perdem a humildade. Não me sinto nem nunca me senti que era "rica", de família tradicional, de "nome" na cidade. Esse status de "elite" não cabe em minha vida. E também não entendia o porque de meu fascínio pelos idosos e idosas. Tenho uma empatia enorme e um respeito imenso por sua sabedoria. Não entendia até deparar-me com um texto maravilhoso de meu amigo Edvaldo Rofatto cujo título é "Bendição". E então percebi o que tanto me encanta nestas pessoas: as suas histórias. Em como contribuíram com seus trabalhos árduos e o suor de seus rostos para o progresso de onde viveram. Me fascina os relatos das épocas idas, das lembranças carinhosas e do respeito pelas suas trajetórias e tradições. Creio que exista uma aspas em minha vida por que estes relatos, de minhas famílias, foram-me omitidos; talvez um pequeno relato aqui ou acolá de minha saudosa Vó Conceição que amava contar histórias. Costumo dizer que os vozinhos e vozinhas são a história viva e estão aí para nos contar o que e como viveram nos momentos importantes da História de nosso País. Mas infelizmente muitos são abandonados, tratados como senis que não possuem mais nada para contribuir. Leso engano. Quanta riqueza e sabedoria há em suas vidas, a espera de alguém que pare para conversar um pouquinho, que os trate com o respeito que lhes é devido. Estes são os verdadeiros "sais da terra", eternas "bendições" com suas lutas, suas vivências. Transcrevo aqui, com a permissão de meu grande amigo e exímio escritor e poeta Edvaldo Rofatto, o texto magnífico que nos remete à uma reflexão ímpar
(ANGEL)
BENDIÇÃO
(para Otávio, Henrique e Vítor)
Todos os que vieram antes de mim, Foram forjados de terra. Graças a Deus!
O amor com que eles a cultivaram Deu-lhes duras marcas desse labor: – Lida com terra grava à flor da pele Sinais de fino trato com enxada e podão, Espinhos nas palmas e flores na alma, Mas também ensina uma religião Capaz de fazer do homem um deus Que ama cria enterra e ressuscita, Semente filho neto sobrinho velho, Como todos eles bem fizeram, Num eterno ciclo de laço e labuta, Graças a Deus!
Terra amorosa, Poeira subida na valsa dos ventos Foi enchendo de telúrico fôlego Pulmões de tanta gente, Força inalada para levantar Mil vezes podões de cana, Mil vezes cabos de enxada, Mil vezes crianças ao colo, Todas as vezes, do solo ao céu, Olhar de exata e infinita compreensão: Assim como é embaixo, é em cima. Quintessência entranhada No suor corrido no rosto, Misturado aos olhos e à saliva: Pele, mucosas, papilas de terroso sal. De terra fomos – e para sempre seremos! Pai que abraça, mãe que embala, Colo que sempre aconchega. Graças a Deus!
Dai-me, Senhor, que eu me sinta Mais puro e nobremente vestido, Quando tiver todos os meus poros Abençoadamente cobertos de terra E limpos do que é a miséria dos homens: Egoísmos, ganâncias, torpezas. Assim poderei me reencontrar com os meus, Do jeito como fui preparado por eles. Assim poderei me misturar com os meus, Sabendo-nos feitos da mesma matéria. Assim poderei enterrar em mim este menino, Em perfeita paz e plena serenidade, Tributo de gratidão imensa aos meus: Na terra, tiveram seu campo de trabalho, Seu eito de retidão para as boas histórias: Nascer, crescer, morrer, renascer – Semeadura e colheita no infindável cultivo Da vida para a safra das boas lembranças. Que me encha dessa terra meu último suspiro, Que a ela eu me misture para ser adubo Do que há de florir em alheios canteiros Que nela eu me disperse E estenda meus braços às sementes E acaricie de tantas raízes o sono leve Que é vigília para primaveras dormentes. Deus permita!