Posts de J. A. Medeiros da Luz (57)

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Do genoma da fênix

Do genoma da fênix

Por J. A. Medeiros da Luz

 

Sou como uma daquelas vetustas gárgulas

Encarapitadas nas alturas das arquitraves e cornijas,

Com a carnadura de mármore escalavrada

Pelo ácido dos séculos e dos líquens,

No congelamento in saecula saeculorum,

De uns olhos irônicos, um esgar, um misto

Do aturdimento existencial e riso alvar,

De quem se descobre suscitador

De terrores de viventes, lá de baixo a espiar,

Neste finalzinho de tarde.

Já num ensaio para a síndrome de Paris...

 

Sou como uma gárgula de eras,

Que, num alvorecer qualquer do calendário,

Súbito terremoto, sacolejando, bruto,

As entranhas dos alicerces do planeta,

Trinca, lasca, despenca, estatela

— Qual rosada manga nos úmidos quintais da infância —

Os membros petrificados; muito embora,

Nos destroços ao rés do chão, possa, ainda,

Se vislumbrar lasca de olhar irônico,

Ao lado de garras de esfinge em pedaços,

Derradeira mensagem à efemeridade dos viventes,

A acusar a alma intrinsecamente termodinâmica

Deste existir: aspecto afinal reinante

Pelos séculos dos séculos — e mais não se diga,

Que pondero não haver mais o que dizer.

Ouro Preto, 25 de novembro de 2020.

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Holmes & Drummond

Holmes e Drummond

Por J. A. Medeiros da Luz

“Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra” — C. Drummond de Andrade.

 

Eis que Holmes desvenda Drummond:

Aquela pedra um tanto pertinaz,

Atravancando a passagem no caminho,

Era como que elementar antecedente

(Mas não causa) daquela alegada

Derrapada dele, à beira dos cinquenta...

 

Embora, certa feita, no escrever dele,

O “elemento feminino da casa”

Tenha se esgueirado, um tanto espavorido,

 Com uns tropeços de reforma

(Alvanéis são mensageiros da ordem e do caos),

Na verdade, terá tal elemento, a quem

Garbosamente fez mil juras, no passado

— Oh, e sempre essa entropia, a inflar-se,

A agigantar-se no palco dos humanos! —,

Com o fenecer da chama dos desejos

(Tendo sido expurgadas todas — menos uma —

Das hipóteses plausíveis),

Terá se transmutado, súbito,

Como nas velhas lendas bíblicas e gregas,

Em pedrouço no caminho...

 

Magicamente assomando

— Um tanto elementar, meu caro! —

Como aquela pedra no meio do caminho,

Aquela pedra no caminho,

A dificultar qualquer derrapada,

No meio do caminho,

Enquanto a oquidão das palavras vai,

Nos tímpanos aturdidos do poeta,

Ecoando, ecoando, ecoando,

À borda do precipício.

E temos dito.

 

 

Ouro Preto, 21 de novembro de 2020.

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Aonde foram todos?

Aonde foram todos?

por J. A. Medeiros da Luz

Em solitude de natureza-morta vejo
Joguete de luzes e penumbras
No volume desta copa, desabitada hoje.
Xícaras de borco sobre pires, na bandeja,
A um canto do balcão, do aparador,
Esperam o tato de mãos conhecidas
— Que já não se fazem presentes.


A mesa redonda arremeda
Maquete terraplanista para insanos,
Na refletância da toalha polimérica,
A fazer convidativo à prosa o seu tampo.
Banquetas, a seu redor, aguardam usuários,
Ausentes deste presente que escoa.
Aqui e acolá, setas de luz resvalam, hesitantes,
Pelas paredes, tão quietas, tão quietas...


E, pois, se oculta onde aquele convidativo
Aroma de café a ser coado,
Perfundindo no espaço, em mescla com a pura
Risadaria de comensais fraternos?


Na evanescência dos minutos, horas e milênios,
A grande verdade que nos eflui do neocórtex,
Cogitabundo neste mundo de sombras, é que
Afinal não somos, com efeito, seres humanos;
No cerne somos todos (quando muito)
Uns efêmeros estares humanos,
A luciluzir um fugaz instante
Naqueles etéreos azimutes do cosmo.

Ouro Preto, 2020.

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Mosca-varejeira

Mosca-varejeira

 Por J. A. Medeiros da Luz

Externo meu pensamento naquela tarde, tão recente: No momento poderia eu estar em marcha, numa caminhada solitária, pela trilha sob árvores, naquela mescla de nostalgia silente, de fim de inverno tropical com cara de pleno outono, quebrada pelo estrepitar de folhas sob nossas botas, inspirando o aroma adstringente dos perfumes vegetais, quase tal qual um novo Rousseau, com aqueles — lá dele! — devaneios de caminhante solitário. Entanto, em vivo contraste a esse romantismo de bom selvagem de polainas e cartola, permaneço, embora sob o frescor da brisa que perpassa pelo alpendre, guarnecido de grades metálicas em losangos e volutas brancas, quieto e meditabundo, nesta tarde que — não demora muito — lá irá se fazendo lusco-fusco.

Talvez assim seja mesmo a vida, e nos cumpre apenas fruir essa sequência de instantes ordinários, mas transcendentes e algo fantasmagóricos, o que pode elevar nossas vistas até as excelsas nuvens que se advinham para além da ramalhada nua do bosque apetecido. E se assim é, aceitemos de olhos cerrados este abraço afetuoso que nos dá o universo, a cada passo, a cada dia, a cada batimento cardíaco; numa comunhão (uma religação) com o cosmo, desde os seus ásperos fraguedos da montanha, até a fiada quase despercebida das diligentes formigas.

E, neste cogitar (que é a essência do próprio existir segundo muitos), posso ver acercar-se a mim a escada serpeante de placas de granito, equilibrando-se sobre a coluna dorsal de concreto Portland, fincada curvilineamente sobre este pelejado jardinzinho em aclive, à minha frente.

Uma bela mosca, mosca-varejeira, com sua carapaça, de refulgente verde metálico, transluzindo ao sol por trás de duas asas de vidro, pervaga, passeia meio ao acaso no dorso de uma folha seca, por vezes limpando sua tromba com as mãozinhas, supostamente em demanda de inexistentes gotas de néctar e de frutos maduros do chão do jardim, na secura desse fim de inverno, que acabou por tostar folhas de relva e ressecou talos de taquaras, dando-lhes uns desmaiados tons acastanhados. E se ela sente que ela de fato existe, logo cogita, forçosamente pensa.

E deve lá, neste instante, alocar a vigilância e a atenção de alguns dos seus múltiplos olhos, em hexágonos de colmeia, sobre o bípede enorme e tardígrado que a observa justo agora, a cavaleiro, desde a cadeira na varanda. Fato é que não parece — ao menos à primeira vista — um comedor de moscas... Contudo, vá-se lá saber!

Mas (continuando), afinal, por que tanto me mira e remira, entre piscadelas de pálpebras,  com esses olhos curiosos de predador gigante? Embora, como aconselhou a meu tetravô aquela velha mosca gaulesa, por nome René DesCartes, que voejava (um enxame de anos para atrás) pelo mercado de peixes de Paris, com suas regras de bem conduzir a razão, devemos — como nos sentencia ainda, pela cadeia de vozes de meus ancestrais — evitar escrupulosamente a prevenção e a precipitação.

É verdade, esse bípede, implume e, ademais disso, calvo, aparentando já madureza rumando reto para a senilidade, não deve ser lá grande ameaça. E lesma, como se vê que é, nem que quisesse me acertaria com sua suposta língua pegajosa. Mas em todo caso, sua tolinha, batamos asas em busca de outro quintal, com mais potencial de doçuras de mangas e carambolas suculentas a fermentar; e com menos curiosos. Ora, pois, alcemos voo e não se fale mais nisso!

E lá se foi, librando-se no ar e a zumbir gostosamente sob o sol, que já declinava rumo à secura rubra do poente.

 

Ouro Preto, 7 de setembro de 2020.

 

 

 

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Essa tardígrada boiada das lembranças

Essa tardígrada boiada das lembranças

J. A. Medeiros da Luz

 

      "Yo amo los mundos sutiles,

       ingrávidos y gentiles,

       como pompas de jabón."

       — Antonio Machado (1875 – 1939)

   

O estralejar de folhas secas do outono

Sob nossos pés, já algo vacilantes,

Evoca-nos cenas deslembradas

Já há décadas e décadas.

 

Os fossos, antes muito transponíveis,

Vão se fazendo vãos precipitosos,

Despenhadeiros onde se abismam ecos

De seixos rolados por acidente.

 

E que uivo latente é esse, de agora,

Como tinido nos tímpanos do ouvido,

Quando o vento perpassa pelo fraguedo,

Em ondas, a levantar reminiscências?

 

Em que córrego de aldeola

— Convidando a gazetear os afazeres —,

Perdi meu boné, larguei os meus caniços,

Os quais já se fizeram pó, conforme reza a lei

Entrópica da vida?

 

Tal cismar, afinal, suscita-nos uma dúvida:

Flui tudo isso pela membrana do presente,

Ou são somente sombras da caverna antiga,

De que nos assevera Platão, aquele

Pensador, incorrigível romântico, da Hélade?

 

                           Ouro Preto, 14 de maio de 2020.

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Devenir

Devenir

J. A. Medeiros da Luz

 

O viver, tão provisório em seu devir,

É símile — enquanto seja — daquela marcha

De aranha-d'água subindo a montante

Contra as linhas de corrente do ribeiro:

Pequenino Sísifo aquático sem rochedo,

 Mas com sina de igual tamanho,

 Entre um curtíssimo descansar e outro.

 

Por seu turno, é o morrer efêmero,

Muito mais que borboleta multicor;

É o encerrar da conta dos fiados,

Nos arquivos da mercearia da vida,

Entreposto de um milhar de sonhos,

Quiosque de praia, ao pé do qual

As franjas espumarentas, fractais,

Das vagas do desejo vinham terminar,

Quando o vivedor lá aparecia

Faceiramente (mas por vezes triste)

Sobre o dorso oscilante arreado

Do asno ajaezado do amor.

 

E em tudo entranha, permeia esse fluido,

Sutil, invíscido, inodoro,

Titã que atende pelo nome Tempo,

E — a devorar os próprios filhos —

Lá se finge de mais ou menos infinito,

Mais enganoso que as tais donzelas

Personificadas no primitivo teatro nô...

E, nesse proceder tão pouco defensável,

Faz-se de mais perene que o Sol,

Essa bola de estrume luminosa

A qual, desde o Egito, o deus Khepra

— Escaravelho velhusco que é —

Rola, rola, orgulhoso pelas areias,

Ralas e incontáveis, do cosmo.

 

Ouro Preto, 12 de maio de 2020. [Brasil] 

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Ontem em Idaho chovia a cântaros

Ontem em Idaho chovia a cântaros

 J. A. Medeiros da Luz

  

Pouco se nos dá, afinal de contas,

Se ontem em Idaho chovia a cântaros,

E que, por aqui, tenhamos sol, como nos assevera

A descritora do tempo — musa de ébano —, na TV.

Sol que, somando-se ao chuvisco do último domingo,

Há de embelecer as vias com mil flores,

Aqui neste nosso claríssimo hemisfério!

 

Em estando assim, porém, nossa paragem,

Por que irmos cabisbaixos, sem muito riso,

A fazer-se-nos a alma sorumbática?

E nem mesmo conseguimos crer:

Se tão luminoso é tudo aí fora,

Como poderemos não folgar?

 

Quem haveria de se resignar, unicamente,

A sustentar aquele compasso indiferente

Do coração, como se fora apenas losango,

Feliz se o pulsar das arestas for a modo

De nos resguardar de sentir dor,

Enquanto marchamos, resolutos, eretos, rumo

Aos importantíssimos afazeres nossos,

Solenemente ignorando que

Ontem em Idaho chovia a cântaros?

 

 Ouro Preto, 7 de maio de 2020.

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Minha lenda sobre o pequizeiro

 Minha lenda sobre a origem do pequizeiro

 por J. A. Medeiros da Luz

Depois de anos de seca inclemente, com os seres humanos já desnutridos, o deus do milho Centeotle, emigrado do México para estas terras, não impede que as lavouras falhem. E por todas as tribos sob Guaraci, o deus sol, a fome vai grassando, e, com ela, as brigas, desavenças, e, mesmo, a degeneração da guerra.

Pequiuatã, um obscuro deus do panteão daquela tribo do Planalto Central, com seu corpo todo polvilhado de ouro, ouve o lamento dessa tribo e desce à terra dos chapadões, deslizando sobre as cores de um arco-íris, surgido após efêmera garoa. E promete ao povo terminar com a seca avassaladora.

O corpulento deus do milho, ao tomar disso conhecimento e irado pela intervenção daquele seu congênere, também desce à terra, e põe-se a  agredi-lo, terminando — depois de longa luta corporal — por matar Pequiuatã, inclusive arrancando-lhe os olhos, que calhavam ser de ouro.

Após o retorno do deus furibundo aos ares — para além das nuvens do poente ensanguentado pela luta — o povo da tribo, agradecido pela coragem demonstrada por aquela divindade humilde e cheia empatia, que por eles perdera a vida, prepara-lhe as últimas honrarias.

Banham o cadáver do deus nas águas espumarentas de uma cascata, ungem-no com óleo de copaíba e flores de cajueiro. Finalmente o enterram, dentro de uma bela urna cerâmica, com motivos geométricos de bela simetria, toda acolchoada de fibras de tucum, perfumadas com a essência das duríssimas amêndoas de muru-muru.

Eis que um curumim, naquela típica incansável procura por coisas e badulaques de interesse, encontra, amoitados ao acaso no capinzal, os dois olhos de Pequiuatã. Penalizado, apesar de muito tentado — por serem de ouro rutilante, sob a luz do deus sol, Guaraci — a guardá-los em um oco de sumaúma, para fazer deles brinquedo no futuro, acaba por enterrá-los, no meio do cerrado.

E naquela noite, a deusa lua, Jaci, esposa de Guaraci e protetora dos vegetais, condoída com tudo aquilo, já que Pequiuatã era seu amigo, derrama lágrimas de chuva fina. Assim ficaram regadas todas as veredas do cerrado, por onde passeiam de tempos em tempos — na busca do de-comer e assuntando as sombras para a evitação de onças-pintadas — as varas de porcos-do-mato, o tapir solitário, as famílias de capivaras, as esquivas e velozes preás.

Com poucos dias, no local, nascem e crescem, de modo milagroso, duas árvores de folhas grandes, coriáceas, ao fim de galhos contorcidos que se enchem de belíssimas flores, com os filetes dos estames, muito brancos, dispostos como um feixe de raios de luz a sair dum astro.

Ao serem polinizadas pelas abelhas jataí e mariposas da noite, essas flores geram frutos carnosos, que guardam no interior grandes bagas amarelas como os olhos de Pequiuatã, de sabor e aroma intenso e característico. O povo da tribo batizou esses frutos de pequis.

E, desse dia em diante, a tribo nunca mais passou penúria, pois os pequizeiros sempre se mantinham verdes, mesmo nos meses mais secos do ano, e ofertando, ao seu tempo e sem cobranças, sua doce polpa como alimento, os quais deviam ser consumidos com calma e com um ritualístico respeito.

Para aqueles afoitos, como Centeotle, o deus do milho, porém, tais frutos reservam uma vingança: uma compacta formação de espinhos a proteger o embrião; centenas de espinhos miúdos que se lhe enterrarão na língua, deixando dolorosíssima lembrança...

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Prelúdio de canção alucinada

 

Prelúdio de canção alucinada

J. A. Medeiros da Luz

 

Veja-nos de novo, cara sombra,

A excursionarmos pelos confins,

Naquela vilegiatura em demanda de

Ignotos desafios a Golias virtuais.

Na hipnose desse ofício áspero,

Estas pupilas se estampam

Pelos matizes do deserto verde,

Brincando de infinito com o azul,

Para além das malhas de inox de uma tela

A peneirar a luz que jorra da janela

Deste despovoado e imaginário bangalô.

 

E por aí vamos que vamos,

Navegando de borbulha na memória,

Dentro de canoinha de guapuruvu,

Meio adernada, mas remando...

A remar pausada, incansavelmente.

 

Importa-nos lá, amiga sombra,

Que ouçamos já, magicamente,

O marulhar de corredeiras e rápidos avante,

No igarapé da vida?

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Ouro Preto, março de 2020.

 

 

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Apenas com um tiro de balestra

Apenas com um tiro de balestra

  — J. A. Medeiros da Luz

 

Eis que a seta da besta alveja a besta,

Após riscar — a 70 metros por segundo —

O fino ar montês.

E, distando muito,  a ocidente, de Alcácer-Quibir,

O agigantado líder, inebriado em sonhos de grandeza,

Mostrando seus molares no esgar,

Vê-se poderosíssimo, ao perceber

O lacrimal de sangue, que percorre

Toda a ilharga da vítima,

A arfejar sobre a areia alvinitente

Daquele condado ímpar,

Onde — vejam só! — as rãs crocitam e,

Do alto das frondes rutilantes,

As águias coaxam — rodeadas

De nuvens de moscas de olhos azuis, azuis.

 

Ouro Preto, 15 de janeiro de 2020.

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Elegia algo dissonante

Elegia algo dissonante

J. A. Medeiros da Luz

 

— a Antônio Coelho da Silva

 

Justo a meio curso da bulha do viver,

Amigo, tu partiste, no dealbar do século, súbito.

Assim, numa manhã luminosa do cerrado,

Às onze horas, irrompem três salvas de tiros de festim,

E hirto corneteiro negro,

Na elegância militar do porte e trajando

Seu uniforme de gala faiscante,

Insufla as dolentes notas de adeus a seu major.

Quarenta segundos de silêncio e de novo,

Em triunfo, mil cigarras trilam e retinem,

Enquanto libélulas esvoaçam sob o sol de verão.

 

Ao lado do profissionalismo dos coveiros,

Tua menina desenha com lágrimas, no vidro do caixão,

O seu amor transfeito em coração...

 

A alma dos teus, no desamparo,

De que teu pobre irmão se mostra

A mais inequívoca, dolorosa, tradução,

Deslembrando-se sermos todos transientes,

Quando de tua lenta descida, por cordas e polias,

Em demanda daquele inescapável

Embarcadouro da nave de Caronte.

 

E naquele mesmo dia,

Em minha solitária jornada de retorno

(O trabalho nos convoca, a vida nos reclama!),

Qual sutil aceno desde o excelso céu,

Pela vidraça do ônibus,

Ao crepúsculo do Planalto Central,

Vi um raro arco-íris duplo reluzir.

Lindo como um poema de Cecília,

À qual tanto amavas e tanto

Recitavas em nossas tertúlias juvenis.

 

Pois é, caro amigo meu:

Por causa de tua ida extemporânea,

Nunca mais vi o pôr-do-sol com os mesmos olhos.

 

 

Ouro Preto, 28 de outubro de 2019.

Do livro: Vielas Enoitecidas, a sair pela Jornada Lúcida Editora. 

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A título do dia de Francisco e dos animais

Meu palimpsesto franciscano

J. A. Medeiros da Luz

Louvado sejas, meu senhor, pelo irmão fogo

com o qual iluminas a noite;

e ele é belo e jucundo e robusto e forte.

— S. Francisco de Assis/A. Capistrano.

 

Eras todo caridade

E lançavas no seio do irmão vento

A prédica maravilhosa de teus atos

Que as palavras reforçavam, as quais palavras,

Tão mansas e cheias de virtude,

Enterneciam o coração dos brutos;

E as andorinhas buliçosas aos milhares

Emudeciam-se a ouvir-te quando

Lhes dirigias semelhantes ditos:

“Sede felizes, minhas irmãs, e gratas e generosas

Porquanto o vosso Pai onipotente

Vos atribui o elemento do ar ao vosso voo

E vos dá as bolotas da floresta, o alimento,

E dá a irmã água, a qual verte entre as pedras

Da fonte cristalina,

E agasalha com as árvores acolhedoras

Vossos filhos nos ninhos!

Louvai o bom Senhor como puderdes!”

A que respondiam as avezinhas

Com cânticos belissimamente variados,

Flechando os ares.

O rico mercador italiano,

O qual te deu o nome,

Muito deve ter se admirado do filho

Abrir mão das coisas mundanas e do século,

Do prazer, tão ridente à mocidade,

E se lançar pela poeira dos caminhos,

Amparando enfermos d’alma e enfermos do corpo!

Que pensaria ele ao ver-te

— Jogral de Deus —

A dividir o pão que mendigavas,

Tendo por mesa a lousa fria,

Por banco, a relva da beira da estrada,

O dossel das nuvens — por único teto?

Só mesmo um coração tão despojado

Para alegrar-se com a injúria e entristecer-se

Quando era centro das homenagens!

 

E se o lobo da Úmbria, o irmão lobo,

Amansou-se com a doçura da tua voz,

O que não conseguiste no endurecido coração

Dos homens, com falar-lhes brando

E sapientissimamente,

No linguajar da gente simples,

Exortando-os à prática do bem?!

De que valeriam, como disseste

Certa vez a Deus (com quem conversavas

Como se fora um amigo

— E por tanta graça te esforçavas

Em seres tanto mais humilde);

De que te valeriam colinas inteiras

De seixos e calhaus mui preciosos

E as campinas com trigais feitos de ouro

E os rios de mel

Ou o mais quanto possa ser mais belo e precioso e raro,

Se eras apenas, no teu próprio dizer,

Vil homúnculo sem maiores méritos!?

Mas reservou-te Deus o paraíso,

Pois bem o merecias...

Sem seres belo e nobre e sem maior ciência

Respondias que, se de inúmeras graças

O Senhor te cumulava

— Do fervor da palavra, do poder de dar

De novo a luz às almas desgraçadas,

Era pra confusão

Da fortaleza, da arrogância e da nobreza.

Tu que, seguindo os preceitos de Cristo,

E tendo por propósito jejuar

Durante quarenta dias e quarenta noites,

No ermo, em meio a silva e espinheiros,

A cismar sobre as coisas celestiais,

Comeste, ao cabo, uma migalha de pão seco

Pra evitares a vanglória de ombrear

No feito com o Crucificado;

Que belos e inocentes ensinamentos

Tu nos deixaste!

O mundo hoje mudou muito em muitas coisas;

Em outras nada.

Já não há mais

Lobos famintos que ameacem as aldeias

E o pó nas alpercatas de hoje

É de carvão e de cal e de cimento Portland.

As andorinhas, os animais, escassearam.

A água e o ar não são mais elementos

Tão puros e preciosos e castos.

Os leprosos já não vagueiam com sinetas,

Avisando sua passagem nas curvas dos caminhos

(Que lúgubre cantilena não seria?!);

Mas as ruas enchem-se de miseráveis

Que esmolam caridade,

De crianças desgarradas, pobrezinhas,

Nascidas sabe-se lá de quem!

As almas continuam pecadoras

Dentro dos seus horizontes

E deve haver orvalhos de esperança

Dentro de cada uma.

Ah, meu pobre amigo,

Que falta ainda fazes

Nestes dias em que a bondade falece

E — todos sós — não conseguimos

Chamar uma só criatura de irmã!

Devíamos acrescentar ao Cântico das Criaturas

Mais este verso tão claro e necessário e vero e fácil:

— Louvado sejas, Senhor, pelo irmão Francisco!

 

Do livro: Vielas Enoitecidas, Jornada Lúcida Editora.

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Bucólica, embora esconsa

 

Bucólica, embora esconsa

J. A. Medeiros da Luz

"Litterarum radices amarae, fructus dulces" —– Cícero

 

Qual pastor da Arcádia — aquela que existia

Só na mente de uns tontos versejantes —

Canto, insistindo em insuflar ao vento

Estes meus versos anecoicos,

Que os líquens dos paredões do promontório

Absorvem em silente anonimato.

 

E dulcíssimos haviam de ser os frutos

Que da árvore de amarga raiz

— com seus mil trabalhos, a literatura —

Iríamos colher, nos asseverava,

Mui professoral, o velho Cícero,

Lá daquelas barrancas pedregosas

E sangrentas do grão império do Lácio...

 

O sol eis que se inclina no horizonte;

No entanto, a rude flauta insiste

Em imitar as aves canoras, que, por agora,

Já se retiram, naquele ir-se abrigando

No aconchego de seus ninhos,

Imersos nos recônditos da espessura.

 

Se correto enfim Cícero não estava,

Que se combata sempre o bom combate,

Pois que há que cantar, mesmo

Na tentativa algo vã de afugentar

A penumbra que, justo agorinha,

Lá vem alçando as sobrancelhas,

Pachorrentamente, pachorrentamente,

Por detrás das colinas do levante,

Deixando-nos ainda uns minutos

Para — conforme rezam os regulamentos —

Fruirmos os nossos derradeiros desejos do dia.

 

Ouro Preto, 7 de setembro de 2019.

Do livro: Vielas Enoitecidas, a sair pela Jornada Lúcida Editora.

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CPP