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Toiling at his final resting place

J. A. Medeiros da Luz

         — “Richard Spruce (1817–1893):  Distinguished botanist,

              fearless explorer, humble man, lived here

              (Placa memorial em Coneysthorpe, Inglaterra).

 

Asseveram fidedignas fontes

E testemunhos desapaixonados

Que, nas noites enluaradas de verão

— Quando o vento expele as brumas —

Naquele velhusco cemitério cristão

Da igreja de Todos os Santos, em Terrington,

Desde o finalzinho de 1893

Faz-se possível vislumbrar o vulto fino

Do resiliente Richard Spruce,

A catalogar as suas ervas, exsicatas,

A rabiscar, sem candeia ou lampareta,

Obras residuárias e outros escritos.

 

E a relembrar, com ímpeto de viajor,

O calor molhado e tórrido

Do Rio Trombetas, do Rio Negro, dos igapós,

E das canoagens mui perigosas

Nos rápidos, resvaladiços e mortais.

 

E em tais noites, garantem as tais fontes

(A quem possua  fleugma para ouvir),

Os musgos e hepáticas, incrustados

Nas lápides rugosas e na mureta

Que as separa (até quando?)

Deste mundo dos vivos-por-enquanto,

Lançam seus esporos pelo orvalho,

Numa celebração noturna à vida.

 

E, mesmo estando o transeunte nessa ilha

(Longe quantas milhas?),

Nessas  noites de luarejo mágico,

Se ouvem assaz distantes, distantes,

Os graves sons do estrugir

De mimbyaparas, as derradeiras trombetas

Dos barés, dos tucanos, dos piratapuias,

Entre goladas de cauim e dança,

Percutindo pés munidos de chocalhos,

Em cantos rústicos, em dáctilos...

Ouro Preto, 30 de janeiro de 2022.

[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]

[Comentos também podem ser dirigidos a: jaurelio@ufop.edu.br ou jaurelioluz@gmail.com © J. A. M. Luz]

 

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Sátiro estoico e angelical

Sátiro estoico e angelical

J. A. Medeiros da Luz

Naquele enorme pátio escuro ao lado

— Em sombras imersa a sua carroça —

De taverna esquecida (há pouco cheia),

Um cigano brioso nos contou

(Quintiliano, ele disse, se chamava),

As suas aventuras, seus amores,

Suas inquietações, e seus anelos,

Mal disfarçando o etanol no hálito.

 

E muito suspirou ao relembrar

A endeusada garota de seus dias

Primaveris, que — flor e espinho sendo —,

Na bruma do passado escafedeu-se,

Deixando-lhe cardume de incertezas,

Dúvidas, borboletas levianas,

A voejar, doidivanas, nas lembranças

Daquela trepidante juventude,

Já um bocadinho (nota-se) distante.

 

No meio do falar mudou-lhe a voz

E com brilho soturno na visão

(A luz do poste nos deixava ver),

Num hesitar, enfim, nos confessou,

Suplicando — por Deus! — nosso silêncio,

Ser mais um deserdado do destino,

Que, bem anteriormente a esse amor,

Lá no esplendor da glória, se chamou

Visconde de Anemúria e Varzim.

E branquejou de súbito a lua,

Que estivera a ouvir, atrás de nuvens;

Alçando olhos úmidos ao céu,

Mirou-lhe num sorrir doce e sem fim.

 

Ouro Preto, 18 de janeiro de 2022.

[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]

[Comentos também podem ser dirigidos a: jaurelio@ufop.edu.br ou jaurelioluz@gmail.com © J. A. M. Luz]

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Poema algo abespinhado: "Em Lilliput"

Em Lilliput

J. A. Medeiros da Luz

 

Cerro as pálpebras, por um momento,

E, num sortilégio estranho e  embasbacante,

Descubro-me, boquiaberto, dando com os costados

— Roupa encharcada, estômago vazio —

Naquela ilha venturosa de mil papagaios,

Verdadeira terra dos lençóis, tamanha

A plenitude de suas praias adornadas

De coqueirais, onde, displicentemente,

Aninha-se e onde canta, onde canta o sabiá.

 

Eis que me vejo, vou dizendo,

Em plena orla litorânea desta ilha

Cognominada, há muito, Lilliput,

E nesta terra — em  se plantando — dar-se-á

Nela tudo, por bem das águas que tem,

De diminutas dimensões,  embora.

 

Mas percebo agora que o estômago,

Tido no início por vazio, a roçar

As doridas costelas dorsais minhas,

Não se constitui somente

Odre velho evacuado: — é que me acho

Constringido por tiras de couro,

Amarrado por embiras fortes,

Numa malha imobilizadora.

 

E quem foram os patifes que me ataram,

Se não esses fedelhos, a meu redor,

Homúnculos  que vejo, numa azáfama,

Podendo, quando muito, ter

Palmo de altura, ou pouco menos?

É mesmo um desplante, ora vejam!

 

Com um inspirar profundo e aterrador,

E um tranco muscular bem súbito,

Arrebento estas amarras de brinquedo,

Pois, sou eu gigante em Lilliput!

E, diferentemente do Bandeira,

Em  não ostentando eu

— Desvalido súdito que sou —

Amizade a  este ou àquele outro rei,

Atiro-me ao mar, em demanda doutra terra,

Sobraçando uma nau de Lilliput.

 

Quem sabe, ao cansar-me, topo

Com plagas onde gozem, enfim,

Seus maiorais, de maior clarividência,

De lucidez de juízo, empatia,

Sem ser déspotas; quem sabe?

— Uma terra governada por equídeos...

Ouro Preto, 17 de janeiro de 2022.

[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]

[Comentos também podem ser dirigidos a: jaurelio@ufop.edu.br ou jaurelioluz@yahoo.com © J. A. M. Luz]

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Rusga Juvenil

— J. A. Medeiros da Luz

 

No meu quarto de hotel revejo a cena:

Ora, pois, com que então, minha doçura,

Tu dizes-me, assim, que vais de vez;

E que não voltarás, aqui, jamais?

 

Não me venhas com essa, Açucena.

Embora, com ser doce a rapadura,

Mole é que ela não é, portanto, vê:

— Tão dura como pedra lá do cais.

 

Repensa, por favor, a tua ira,

Que não se funda na santa verdade,

Sabe lá Deus somente o seu  porquê.

 

Isso só aumenta, enfim, tua beldade:

Remirares assim é o que retira

O meu sossego — e até o de quem lê.

 

Ouro Preto, 27 de dezembro de 2021.

[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]

[Comentos também podem ser dirigidos a: jaurelio@ufop.edu.br ou jaurelioluz@yahoo.com © J. A. M. Luz]

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Uma crônica de Natal, pelo meu finado pai

Pessoal: 

Desejando-lhes a todos um Natal gratificante, abarrotado de afeto partilhado entre os seres queridos, lembrei-me de usar um texto de meu velho progenitor, médico — mas que tinha o árduo gosto de escrever. O texto possui tocante simplicidade, assemelhada — parece-me —  àquela suave empatia de um conto de Alphonse Daudet, falando do povo simples da Provença. Os verbos na segunda pessoa do singular se devem a ele ter nascido em Palhoça, SC (na época em que ainda não haviam degenerado, propositalmente, a declinação...). Esta historieta está enfeixada no livro de crônicas e ensaios filosóficos intitulado: "Visão Amena do Mundo" (Editora Jornada Lúcida Editora, 2013). Ei-lo a seguir, e espero que o apreciem. 

A Pobreza de Papai Noel

 

       — José Ávila da Luz [1927–2017]

    Era véspera de Natal. Entrei no quarto – minha mãe chorava e chamou-me.

          – Vem cá, meu filho, quero explicar-te certas coisas.

          Este ano Papai Noel está muito pobre e talvez não vá poder trazer nenhum presentinho aqui em casa. Mas não fica triste que, no próximo ano, as coisas melhorarão e então vais ganhar bonitos presentes.

          Abracei-a e beijei-a comovidamente, procurando secar com minhas mãos as lágrimas de sua face.

          Estava triste, é claro, mas não podia mostrar que estava. Ninguém tinha culpa da pobreza do Papai Noel. Além disso, um ano passa rápido, não passa? Deixei-a mais conformada e saí correndo para brincar com o cachorrinho novo, que também gostava de brincadeiras.

          À tarde, meu pai chegou da cidade e percebi que confidenciou algo com minha mãe. O que seria?

          Pela manhã seguinte, ao acordar-me, vi ao meu lado um bonito pacotinho todo enfeitado. Abri-o apressadamente.

          Papai Noel não se esquecera de mim. Era uma grande quantidade de soldadinhos de chumbo.

          Um verdadeiro batalhão. Tinha até canhões e soldados a cavalo. Fui correndo mostrar para minha mãe, que me abraçou chorando.

 

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 Extraído de: Da Luz, José Ávila. Visão amena do mundo. Ouro Preto: Jornada Lúcida. 2013. 93 p, il.. [ISBN 978-85-67228-00-6]

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Desterro

Desterro

 J. A. Medeiros da Luz

 

E cá este simplório aspirante a vate,

Longe da garganta dos ecos,

A recitar com pompa os seus versos;

Porém, virtualmente, como que

Recluso em câmara anecoica,

Confinado por paredes umbrosas, fofas,

Fractais e feitas com argamassa de silêncio.

 

Que é já da reverberação das frases?

Que é daquele esfuminho acústico,

Que tira a nitidez dos fonemas, envolvendo-os

Em túnica de éter, em vaporoso

Manto tecido

Com a urdidura de poesia

E a trama de fiapos bioluminescentes

De instâncias de vida

— Esta mercadoria das Carpas fiandeiras —,

Colando um suspiro de fantasia

Em cada sílaba proferida?

 

Mas ele, em verdade, vê-se ilhado,

Deambulando por vastíssimo areal,

A lançar, nos tentáculos do vento,

Palavras evanescentes, telúricas, fugazes,

Expelidas de modo irreprimível

Daquele vulcão submerso,

Onde habitam os sentimentos.

 

Quando, afinal, encontraria o consolo

De tímpanos e vocalizações fraternos,

A porem-se, diapasões de empatia,

Naquela inefável ressonância de almas?

Pois, se os desertos são isentos de paredes?

Pois, se estão livres das muralhas estupendas

Das hartas árvores que, distantes, medram

Na espessura das florestas tropicais e que

— Imperturbavelmente igualitárias —

Absorvem gargalhadas e gritos e gemidos?

 

Haverá de ser — Deus meu! — isto

(A um tempo enervante e alentador),

O tal predicar, sermonear no deserto?!

Ouro Preto, 08 de dezembro de 2021.

[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]

[Comentos também podem ser dirigidos a: jaurelio@ufop.edu.br ou jaurelioluz@yahoo.com © J. A. M. Luz]

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Do Lácio o deus era finito

 

Do Lácio o deus era finito

 J. A. Medeiros da Luz

  

Pois assevera-nos Ênio

Que da morte o habitat

— Reino trevoso — lá demora

Nas ribas barrentas do Aqueronte

(Igarapé de águas gélidas e turvas),

Com altos templos ao deus  Orco,

E pálidas, desmemoriadas hostes,

Miríades de espectros taciturnos

De Leto pervagando grotões enevoados

Por penumbras, por tênebras, por brumas.

Peregrinos sem meta atingível…

 

E tal paragem abissal, imersa

Em eterna túnica de silêncios,

E plena de ravinas e espinheiros,

Teve por efeito meter medo

Ao augusto imperador do orbe,

O poderosíssimo Adriano.

 

Assim, e afinal se vendo humano,

Extenuado, pondo-se por fim

A palmilhar a derradeira milha,

A facear já, embora desquerendo

— A crua verdade seja dita! —,

O inescapável estirar de canelas,

Desta sorte arguiu, desconsolado,

Sua alma trêmula, gárrula, estouvada

Borboletinha buliçosa e leve:

 

— Ó anímula, nômade, grácil,

Conviva parceira do corpo;

A que lugares ora partes,

Pálidos, rígidos, desnudos?

Sem, como soías, dar-te a joguetes?

 

 

 

Ouro Preto, 02 de novembro de 2021.

[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]

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Ácaro

Ácaro

 J. A. Medeiros da Luz

 

 Através de trilheiros de silvas ressequidas,

No carrascal espinhento dessas dúvidas

Que nos permeiam, suscitando-nos aquele

Reperguntar insano sobre as causas,

Nós, em nossa pequenez insética, aracnídea,

Súbito, num perpasso,

Roçando-nos a vida os seus flancos,

Saltamos para a grande caminhada!

 

E cá nos vamos a carrapatear a vida,

Sofregamente, a mordendo e sugando,

Parasitos com nossas diminutas

Ventosas e garras e quelíceras.

 

Eis que, em resposta a nós, seu corpanzil,

Defendido por pelagem de tapir, de guzerá

— Imune a mil espículas, a mil espinhos, a mil estrepes,  

E aos farpados arames das divisas —,

Fazendo pouquíssimo caso

De nossa despudorada intrepidez,

Marcha para frente, invulnerado

(Mas, teimosamente, a gente persevera),

E  nos translada, à nossa ­revelia,

Para onde bem entende.

 

Até que, integradas, contabilizadas todas

As nossas depauperadas finitudes,

Empanturrados nós outros de existir, e a querer mais,

Já o vigor evanescendo da musculatura

— Ginastas exauridos das forças do agarrar —,

Desprendemo-nos, por fim,

Daquela epiderme, resistente e migradora,

De tapir cósmico e nos despencamos

Na queda abismal, tornando-nos

Bólidos imersos nas incertezas que medeiam

Entre esta alma pelagem nutridora

E soturnas penumbras que lá nos esperam,

Junto àquela gelidez cadavérica,

Do saibro sanguíneo e incógnito final.

 

 

 

Ouro Preto, 24 de outubro de 2021.

[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]

[Comentos também podem ser dirigidos a: jaurelio@ufop.edu.br ou jaurelioluz@yahoo.com © J. A. M. Luz]

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Baladilha esconsa

Baladilha esconsa

 J. A. Medeiros da Luz

   

A alma daquele pequenino

Não tinha cor, mas tinha brilho.

 

Por apetecer devaneios,

Com seu cajado imaginário,

Tangia mil nuvens no céu.

E sorria para besouros,

Como se fora um amigaço.

E as esquivas preás do brejo

Eram amadas do garoto.

 

Por apetecer devaneios,

A poça de lama da chuva

Virava mar de brincadeira

Para dez naus de papel pardo.

E prego torto era tão útil

À sua fábrica de estrelas!

Mimetizava um Leonardo,

Mas com asas de borboleta.

 

Por apetecer devaneios,

Não há dúvida, meus senhores,

— E, pois, digo eu cá sem rodeios —

Havendo no mundo mil cores,

A alma daquele pequenino

Não  tinha cor, mas tinha brilho.

 

   

Goiânia, 03 de outubro de 2021.

[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]

[Comentos também podem ser dirigidos a: jaurelio@ufop.edu.br ou jaurelioluz@yahoo.com © J. A. M. da Luz]

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Pertinácia

Pertinácia

 J. A. Medeiros da Luz

 

Quão enlevado moço existia

Nos fotogramas embaçados do passado!

Que dádivas do altíssimo almejava,

Em meio à peregrinação a iniciar;

Novo Aasverus, errante — por destino,

Não por irrisão ao Nazareno?

 

Se inda nesses dias atuais, que correm, correm

— Despóticos, dissuasores, distópicos, disfêmicos —,

Persevera a remar para montante,

Por entre mururés e troncos à deriva,

Feito o Guesa, errante por escolha?

 

E com a irracionalidade da tarefa

Dum Sísifo, já sem reinado na Tessália,

Rolando monte acima, reiteradamente,

O seu pedralhão limoso e bojudo,

Crê que há gota de esperança em toda lágrima.

 

Marcha feito calejado prospector, esperadiço,

Garantindo a si próprio bamburrar — ali! — naquela

Curva pedregosa do ribeiro, recheada

De ouro a lhe chamar, nos interstícios,

Há, mesmo, lhe parece, alguns milênios.

 

Altivamente ereto,

Lá segue escanchado em seu burrico,

Aquele avelhantado tropeiro, sem descanso,

Embora desmunido de tropa e com suas

Bruacas laterais abarrotadas

De penumbras, de vendavais e de silêncios.

 

Afinal (todos se indagam, atarantados,

Ansiando por bisturi com o qual possam

Desentranhar-lhe as vísceras da alma),

Quão deslumbrado o moço existia

Nos fotogramas embaçados do passado?

 

 

 

Ouro Preto, 18 de setembro de 2021.

[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]

[© J. A. M. Luz; comentos também podem ser dirigidos a: jaurelio@ufop.edu.br ou jaurelioluz@yahoo.com ]

 
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Planeamento

Planeamento

 J. A. Medeiros da Luz

 
Inda Vésper tremula na borda do horizonte.
Por seu turno, também, em retardo,
Nem se dissiparam por completo,
A espiralar de modo errante, vaporoso,
Assenhorando-se de todos os percursos,
Os inebriantes perfumes que perfazem
Os duzentos eflúvios da noite,
Feromônios do desejo.


E já, espevitadas e levípedes
 — Ricocheteando na lisura das pétalas
A matizar a policromia da campina —,
As flechas rosadinhas, alvas, amarelas,
Da luz do sol no alvorecer
Arrancam brilhos de mil pedrarias:
Maravilha, presente, oferenda magnânima
Daquele esquivo, enamorado,
Rocio da madrugada.
 

Pois, nesta hora, plena de aromas e trinados,
Com as barras das calças umedecidas
De perpassar por ervas e folhagens,
Eu — ó Lavínia suspirosa, que está
Ainda sonhando de fechadas pálpebras —,
Pervago por estes caminhos solitários,

No albor de um novo dia,
A coligir com zelo, em samburá de vime,
Umas florezinhas silvestres, multicores,
Enquanto conclamo, desassombradamente,
Meus desfortalecidos fiapos de coragem
Para enfim, enrubescido embora,
Após tantas malogradas tentativas,
Bater-lhe à porta… e lho ofertar!

 

 

Ouro Preto, 24 de agosto de 2021.

[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]

[Comentos também podem ser dirigidos a: jaurelio@ufop.edu.br ou jaurelioluz@yahoo.com © J. A. M. Luz]

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Comensais d'antanho

Comensais d’antanho

J. A. Medeiros da Luz

 

E aquelas traças do sótão

Estampam lá sua gramática,

Que é muito mais escorreita

— E que primor de figuras! —,

Com muito mais louçanias

Que o jargão das pobres traças

Que assentaram residência

Entre volumes  lá embaixo,

Nas estantes do escritório.

 

De Camões belas metáforas

Fazem uso inconteste;

Empregam termos castiços,

Encontradiços, enfim,

Em Aquilino Ribeiro,

No grande Euclydes da Cunha,

Dez mil daquelas pulsáteis

(Miríade… lá diriam!)

Camilianas imagens,

Com peregrinos vocábulos…

E que citações de Cícero!

Já do La Rochefoucauld,

Carroçadas de provérbios.

Mas por vezes termos chulos

Furtados de Matos Guerra…

 

É que, ao contrário das primas,

Essas assaz eloquentes,

Galhardas traças do sótão

Só devoram, maturados

No manto de pó de décadas,

Cartapácios e compêndios

Desses autores d’antanho.

 

Hoje mesmo as encontrei

(Subindo eu lá com propósito

De lhes fazer um flagrante)

A mordiscar com donaire

Dona Guidinha do Poço,

A pobre da Tia Tula,

E a Vida de Santo Antão

(Novo suplício daquele

Anacoreta do Egypto).

 

 

Ouro Preto, 22 de agosto de 2021.

[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]

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Carpintaria

Carpintaria

J. A. Medeiros da Luz

 

Não há em minha essência

Neblinas de sonho e de melancolia.

Qual velho gafanhoto verde na folhagem,

Meu imo contenta-se em mimetizar

Prego de ferro galvanizado que penetre,

Rasgando, a carne enfibrada

Da vigota de madeira,

A prender rijo a carenagem

À custa do vigor daquelas

Pancadas na cabeça, desferidas

Pelo martelo do destino.

 

E lá do quintal de meu vizinho

Só se percebem, enfim, pelo vizinho

As notas musicais da percussão,

Estrepitosas, bruscas, estúpidas, titânicas,

Sinalizando a doce monotonia

Da rotina dos afazeres

Em tempos de suor e de labuta.

 

Não,

Meu espírito não exibe nada

Da cantada evanescência,

Das trêmulas palpitações

— dir-se-ia: da sublimidade —

Daquela música dos sonhos.

 

É somente mais um infinitésimo,

Ou, expressando-me, assim, concretamente,

É apenas mais um prego

Fincado no cavername da chalupa,

Esta nave que se vai,

Entre mares de brumas e de ventos,

Naquela demanda inescapável

De nossos mais esquivadiços horizontes.

 

 

Ouro Preto, 5 de agosto de 2021.

[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]

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Carpas

Carpas

J. A. Medeiros da Luz

 

Juro-vos, ocasional leitor, pelo que

De mais sagrado há de haver aqui;

Juro-vos: somente a verdade profiro,

Rebuçada, embora, pelo vaporoso

E diáfano véu da fantasia,

Como se exprimia nosso velho Eça,

Com engenho e astúcia e ironia.

 

Umas três ou cinco carpas multicores,

Valendo-se do silêncio, da penumbra,

De nossa sala de estar,

Saltaram para fora da tela espatulada,

Respingando, na alvura das paredes,

Nódoas de óleo de linhaça e azul-cobalto

Da piscina borbulhante onde nadaram

Durante duas décadas de gelo

Em que estiveram paralisadas

Pelo timbó, pelo curare, neurotoxinas

Da espátula miraculosa do artista.

 

No retângulo de tela emoldurado

Sobre a imprimadura de alvaiade,

Estampando a geometria áurea,

Só restaram esverdinhadas folhagens

Entre seixos alvacentos e umas parcas

Verdolengas ilhotas de aguapés,

E espumas de madrepérola nas margens.

 

E que fim, Deus meu, levaram as fujonas?

Mimetizando bagres africanos,

Que corcoveiam à noite, nos pastos entre rios

— zombando de  limites topográficos —,

Evadiram-se pelos limosos pedrouços

De nossa realidade cartesiana;

E lá se foram mergulhar, às piruetas,

Naquela fantasiosa terra dadaísta,

Descoberta pelas naus etéreas

Daquele armador, señor Dali,

Salvador de todas as quimeras,

De todas as miragens do sonhar.

 

E já me asseveraram supostas testemunhas,

Que por lá vagaram, em demanda

De Eldorados ou do que os valha,

Que suas escamas, lá, exibem brilhos

Ao luar que aqui não tinham,

Sob a luz nossa, de lâmpadas de LED.

 

 

Ouro Preto, 4 de julho de 2021.

(Do livro: Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora em 2022)

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Goiaba

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Goiaba

J. A. Medeiros da Luz

 

Rutilando ao sol de nosso  quintalejo,

A dourada goiaba do presente

Infunde aromas mil da infância!

A sua carnadura doce, entre os dentes,

Evoca brincares, latidos, furtos em quintais...

 

Mas, e a ti (que somente agora percebo),

Que te parece,

Pobre larva que te escondes, entranhada

No cerne rubro com multitude de sementes;

E que, descuidoso, desalojo, descartando-te

E a teu reduto — casinhoto de guloseimas —

A um canto maninho de terreiro?

 

Atirada assim, para além da fronde,

Espessura de folhas ásperas, mas que

Nas noites ventosas dedilhavam,

Para tua fruição plena de criança,

A harpa eólia, farfalhando, e que

A custo ouvias, pelo orifício da entrada;

Ou se rebrilhavam todas, quando calhava

De haver luar após a chuva,

Com seus reflexos dançantes, borboletas lúcidas,

A brincar de espelhos noturnos

À frente de tua diminuta portinhola.

 

Eis que — conflito amargoso! —

Este meu próprio sonho de criança

Aborta-te o sonho teu, que era o único

De tua inocente cerebração:

O de fruir a efemeridade mágica

De vida adulta, de alada mariposa,

Durante, talvez, uma vintena de manhãs,

Mas com cem mil azimutes a eleger!

 

Resta a mim, apenas, agora que já é tarde,

A lavagem de mãos, como Pilatos,

A justificação nem tão convincente

De exclamar, me isentando do embaraço

No escolher entre dois sonhos:

— Caramba, esta equação

Não tem duas soluções no campo dos reais!

 

Ouro Preto, 12 de março de 2021.

(Do livro: Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora em 2022)

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Cogumelos ao sol

Cogumelos ao sol

 J. A. Medeiros da Luz

 

Como nos exclama, embora emudecida,

A solidão do seixo entre tantos!

Seus lombos, úmidos do orvalho

Que se condensou na antemanhã,

Chispam reflexos dourados da aurora.

 

E cada dorso (já em pouco, tépido de sol),

Com suas corcovas e vilosidades,

É uma história única de vida!

 

Lá na escalavrada pele, lanhada,

Lixada dos trambolhões nas enxurradas,

Limada dos vórtices da correnteza,

Polida, afinal,

Após um assuntar de séculos nos rápidos,

Nos igarapés, nos córregos;

Lá nos volteios dos seus dorsos rígidos,

Eis que semelham estranhas tartarugas,

Dormitando à beira dos ribeiros,

Sobre as quais vêm lamber respingos

—Sempre em hordas coloridas e fugazes —,

As buliçosas e inquietas e silentes e assustadiças

Borboletas das campinas.

 

Entretanto — esdrúxulo que sou! —,

Estes meus olhos, que a idade faz

Um tanto sorumbáticos, enevoados,

Calejados já, cismáticos

Dessa humana multidão de seixos,

Rolando virtualmente seu curso pelos cantos

Do viver e do sobreviver,

Desde seus veios (engastados

Na ingremitude de fráguas e penedos),

Até à praia do silêncio e dos jazigos,

E estes olhos — digo — os veem

Não pedrouços (que assim se creem),

Mas uns aglomerados frágeis, frágeis,

De cem cogumelos brancacentos

Flagrados a se fingir de duros, esdrúxulos

Arremedos de seixos ao sol,

À fimbria do regato, após a chuva...

Ouro Preto, 16 de fevereiro de 2021

(Do livro: Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora em 2022).

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A sort of reckoning night

 J. A. Medeiros da Luz

 

Par de retinas insones filtra a cena,

Na antemanhã da fuliginosa megalópole.

Não, não há o murmurejo hipnotizante

De fonte límpida, borbulhante,

Alumiada pelo palor aveludado da lua,

E que por cujo perímetro de aconchego

Derramar-se-iam uns transientes

Ramos, carregados de flores na Primavera;

E nem se ouvem sussurros de amantes.

 

Não!

Uma fria lâmpada de LED, em frente,

Desde sua altitude de aluguel,

Asperge gelidez por meio dum cone de luz

Sobre a caçamba de coleta de lixo,

À volta da qual farejam, expectantes,

Dois cães a exibir o claro-escuro

Dos feixes de costelas,

Magérrimas, magérrimas,

Pulsando breve e em sincronia

Com aquele seu arfejar das narinas,

Irrequietas, rápidas, úmidas de esperança.

 

 

Ouro Preto, 12 de janeiro de 2021.

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Aprestos de viagem

Aprestos de viagem

 — por J. A. Medeiros da Luz

 Assevero-lhe, terna Etelvina,

Em que pese às agruras do seguir,

Que carecemos daquele vigor

De perseverar na peregrinada

Que todos devemos inexoravelmente cursar,

Quer nos dardeje o sol intensamente,

Quer chova, relampeie, com o vento irrequieto,

Metamorfoseando em flâmulas de guerra,

Bandeiras drapejantes, nossas roupas no varal.

Energize-me, pois, cara Etelvina,

Com esse seu sorriso coruscante,

Catalisador de tantos sonhos.

Que, sob influxo desse alento, irei eu

A marchar por trilhas e vales e montanhas

E fraguedos e capoeirões e chavascais.

Rumo àquela fronteira mágica

Onde o chão se funde ao firmamento.

  

Ouro Preto, 2 de janeiro de 2021.

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E meu tio trouxe de África

E meu tio trouxe de África

Por J. A. Medeiros da Luz

 

“Meu tio trouxe de África sequoias”.

Seria um respeitável decassílabo

(Com cesura na sexta, antes da tônica

Final, no heroico metro de Camões),

Mas iria falsear toda a botânica,

E isso pra dizer a chã verdade.

De fato muita coisa trouxe ele,

De estada prolongada em Angola.

Trouxe de amigos nomes africanos,

Trouxe estátuas de ébano esguias,

De moças com o ébano na pele.

Trouxe lusofonias variantes,

E mais coisas de que já não me lembro.

Entre essas coisas muitas que ele trouxe,

No fundo da bagagem, em latência,

Lá dormitavam, bem pacienciosas,

Sementes de baobás — e não sequoias!

Sementes de imbondeiros, que são, hoje,

Árvores mui robustas, que respiram

A brisa e os fótons doces das Américas;

Embora inda farfalhem uns lamentos:

É banzo pela tribo tão distante!

Meu tio trouxe de África, afinal,

O seu baú de sonhos — e uns dólares,

Pois que também ninguém de ferro é.

Ouro Preto, 17 de dezembro de 2020.

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Fotograma

Fotograma

 por J. A. Medeiros da Luz

          — O thou Mowgli — for Mowgli the Frog I will call thee — the time will come when thou wilt hunt Shere Khan as he has hunted thee.

              The Jungle Book, por R. Kipling.

    

 Você não se deu conta, amigo,

De ter sido engajado, sem escolhas,

Nesta enlouquecida alcateia dos homens.

E, pelas veredas e chapadões sem fim, em demanda

Das coisas que o mantém a respirar,

Permanece a farejar o ar fino das campinas,

Entre burgos,

Interiorizando emoções confusas.

 

Não há chamado, apelo da selva que o redima.

A comunidade dos lobos queda imersa

No jângal penumbroso,

Sem o mínimo espaço para meninos-lobos

Em seus ninhos aconchegantes de palha, folha seca,

E fibras de talos de helicônia.

 

E se você mirar os céus infinitos,

Naquelas veludosas noites de novilúnio,

Quando o jaguar remanescente ainda vaga,

Há de ver que os outros chapadões galácticos

Encontram-se muito além de nosso alcance.

Muito para além das colunas de Héracles,

Para além da derradeira curva

Do derradeiro córrego, perdido

Em meio às remotas brumas de sua infância.

 

 

Ouro Preto, 25 de julho de 2020.

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CPP